Fonte:www.youtube.com/watch?v=u24WcelAjww
Este filme é duro, chocante, cruel. Duro porque apresenta a realidade
dos hospícios manicomiais com uma transparência que parece de
documentário e não de filme; chocante porque os espectadores podem
facilmente sofrer o impacto "da medicina manicomial", e cruel porque as
cenas de violência desumana em nome de um tratamento psiquiátrico
mostravam sem alegorias ou metáforas como o homem pode ser o lobo do
homem.
Neto, personagem de Rodrigo Santoro, vive o drama de ter sido internado em um hospital psiquiátrico por seu pai, que o julga e o rejeita pelo seu suposto envolvimento com drogas, após encontrar um cigarro de maconha em suas coisas. O pai conservador, rude e ignorante e uma mãe submissa, que não procuram em nenhum momento dialogar com o rapaz, nem tentam compreender as mudanças que passam na cabeça do filho numa fase tão conturbada como a adolescência, onde muitos adolescentes apresentam um comportamento rebelde, reforçado pelo fato de procurar aceitação e identificação por um grupo de amigos do qual faz parte, incitando-o a utilizar bebidas alcoólicas, pichar muros e ter atitudes de confronto com o pai, esse adolescente não encontra apoio algum no âmbito familiar.
Sem preparo nem informação alguma o jovem é simplesmente deixado pelo pai nesse manicômio, onde é tratado de maneira agressiva, impiedosa e desumana. Os familiares que “cheios de boas intenções” viram cúmplices do hospício e de suas cruéis torturas, só tiram Neto de lá quando já era tarde.

Entre internações e tentativas de se reestabelecer e reintegrar à sociedade, Neto passa por diversas situações, convivendo no seu dia-a-dia com o preconceito, os medos, as inseguranças e as sequelas causadas pelos intensos e absurdos tratamentos utilizados na tentativa de ser “salvo”.
Essa realidade, vivida no hospital, é tratada como o lado de lá, pois ao mesmo tempo em que os incluem em um contexto, não lhes permite nenhum tipo de escolha, nem liberdade, nem direito como indivíduo, diferente daquele ideal de sociedade que encontramos na maioria dos países que acreditam na democracia atualmente.
“Pro lado de cá, não tem acesso, mesmo que me chamem pelo nome, mesmo que admitam meu regresso. Toda vez que eu vou, a porta some, a janela some na parede. A palavra, de água, se dissolve…” – Pro lado de cá, representando a sociedade livre por detrás dos muros do hospital, não dá espaço para alguém que por algum motivo, algum dia, foi excluído.

Após receber alta, depois Neto retorna a outra instituição semelhante, levando-o a tentativa de suicídio, ateando fogo aos cobertores num pequeno cubículo escuro onde se encontrava. Quanto mais tempo no hospício, mais Neto vai ficando acabado, mental e fisicamente.

O manicômio, que supostamente deveria curar o paciente, acaba por deixá-lo louco e mais alienado do que nunca, sem nenhum estímulo para o intelecto nem para o físico, e com funcionários violentos, resta-lhe apenas isolar-se em seu próprio mundo. O filme é encerrado com o pai lendo uma carta de Neto, ou seja, ouvindo pela primeira vez a voz do filho.
A reforma psiquiátrica e os manicômios
A psiquiatria manicomial retratada no filme não está muito longe da situação nos hospícios de Paris, que Pinel tentou combater no fim do século XVIII na Sarpetriére. Pinel encontrou pessoas torturadas por serem loucas, presos a correntes de ferro, como se ainda no século XVIII permanecesse a visão demoníaca para doença mental, que vinha da Idade Média.
![]() |
Bicho de Sete Cabeças |
É constatado no artigo "A preparação de atores do filme 'Bicho de Sete Cabeças", que Sérgio Penna fez um trabalho de preparação dos atores para que eles pudessem assumir a loucura dos personagens. É importante dizer que ele e o ator do filme conseguiram assumir plenamente o comportamento psicótico dos personagens e a transformação do Neto (Rodrigo Santoro) de pessoa praticamente normal para um ser inseguro, vacilante, se desligando passo a passo da sua consciência e de sua vontade.

No filme, bastou a irmã do rapaz contatar alguns conhecidos influentes o bastante pra lhe prestar esse favor. Nessa instituição, o médico só aparecia uma vez por semana e mostrava um total desprezo e descaso com as pessoas internadas, nem sequer parando para ouvi-los. Assim, o personagem continua clamando por alguém que o ouça e o compreenda. O médico, autoridade absoluta e inquestionável até então do saber psiquiátrico, se mostra frio e indiferente ao tratar o paciente, da mesma forma a enfermagem, estes que estão ali pra proporcionar conforto e segurança ao paciente, mostrando total negligencia ao decorrer do filme.
Não há uma preocupação diária com a higiene e com a privacidade dos pacientes, já que vemos num dado momento do filme, os pacientes nus no pátio. Há o fornecimento ou facilitamento de cigarros, já que vemos muitos internos fumando.
A assistência do hospital estava baseada somente na internação, ou seja, a exclusão do paciente da sociedade. Neto foi excluído do convívio da família, dos amigos, da escola. Alguns métodos desumanos são evidenciados no filme, que foi o alvo da construção da crítica a esse tipo de hospital, que usavam medicamentos fortíssimos, onde muitos pacientes ficavam em estado vegetativo e sem pensamentos, produziam alucinações, além de pacientes serem trancafiados, a exemplos do personagem que é preso por dias seguidos num cubículo escuro e fétido pelo enfermeiro, que o acha indisciplinado. Muitos sofrem agressões físicas, além dos choques elétricos: práticas comuns em tais ambientes.
No dizer do prof. Doutor Emílio Mira y López os tratamentos de choque usados na década de 50: Cardiasol, como insulínico e eletrochoque, poderiam ser comparados a uma técnica de pegar os pacientes e ameaça jogá-los num precipício, se os pacientes melhoravam com o tratamento de choque seria pela consciência de que entre continuar a recebê-los e se adaptar ao hospital psiquiátrico, seria melhor optar pela segunda alternativa, não só por uma questão de medo, mas também para preservar a vida.
Em uma ligação feita pelo diretor do manicômio vemos outra denuncia da reforma psiquiátrica: a mercantilização da loucura. É dado um incentivo a instituição pelo número de pacientes existentes no local, e para tanto não há escrúpulos, o diretor diz: “pegaremos qualquer mendigo e lotaremos isso aqui!”. Não há nenhum instrumento que avalie a instituição e possa levá-la ao descrendenciamento (nos casos das irregulares) como atualmente existe o PNASH/PSIQUIARIA. Na época anterior a reforma, as únicas possibilidades de fiscalização e avaliação eram os supervisores do SUS ou auditórias que atendiam a denuncias feitas por familiares de usuários, o que é muito longe da realidade do filme, já que ninguém ouvia ao gritos de socorro de Neto. Sua família antes das visitas era orientada a não estranhar o comportamento do rapaz e a julgar pelo jardim da instituição e pelo aspecto corado e nutrido de Neto (muitas vezes conseguidos a custa de remédios que lhe abria o apetite). Não poderiam haver suspeitas.
Quando Neto enfim consegue sair da instituição, vemos que ele não tem assistência alguma, após um período de internação prolongado não há nenhuma preocupação em reinseri-lo na sociedade, já que após um longo período internado necessitaria de apoio para se readaptar, como é dado atualmente pelos CAPs e NAPs e residências terapêuticas, ele precisaria do apoio dos Capsad (que atende a usuários de drogas e álcool) já que supostamente ele se encaixaria nesse perfil. Essas instituições são instrumentos de grande valor para a reforma.

A reforma contribuiu para transformar práticas, saberes, valores culturais e sociais, ressaltando o direito que essas pessoas têm de ter uma assistência, inclusive de enfermagem, de forma digna e humana.
Fonte:http://www.psicosmica.com/2012/06/bicho-de-sete-cabecas-e-reforma.html